terça-feira, fevereiro 13, 2007

“UMA IGREJA LIVRE NUM ESTADO LIVRE

“”Non possumus”: não podemos. Desde o dia seis deste mês que esta expressão latina, usada noutras circunstâncias históricas e agora repetida num artigo de fundo do jornal “Avvenire”, órgão do bispado italiano, desencadeou severas reacções na imprensa italiana.

Aproveito-a, entretanto, para aplicá-la ao bom êxito do sim no referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez.
Non possumus aceitar a penalização do aborto: a maioria dos votantes assim o decretou; cabe às forças do Governo e ao Parlamento, a partir de agora, preparar uma lei decente, socialmente justa, eticamente aceitável.

Não concordo com certas opiniões acerca de quem perdeu ou ganhou. Quando se diz que a Igreja Católica saiu derrotada, penso que esta afirmação seja bastante imprópria.

A Igreja nem perdeu nem ganhou: limitou-se a defender os princípios éticos do catolicismo. Fez o que devia e o que dela se esperava.
Houve certas quedas de estilo, nisso estou de acordo. Alguns representantes demarcaram-se de um comportamento sereno: quer no desequilíbrio das palavras; quer em argumentações exacerbadas e de péssimo gosto.

Apesar de sermos um país essencialmente católico, temos sabido criar leis em sintonia com as características de um estado laico e em conformidade com a preocupação de salvaguardar deveres e interesses do cidadão, mesmo que tais leis nem sempre coincidam com os ditames religiosos.
Legislou-se sobre as uniões de facto, por exemplo, e soubemos reparar injustiças inerentes a estas realidades, hoje em dia muito comuns.

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NON POSSUMUS

Desde que o governo italiano, no Conselho de Ministros, aprovou um projecto de lei sobre as uniões de facto – lei cautelosa, mesurada e evitando chocar sentimentos religiosos - a hierarquia católica, esquecendo-se da ponderação que sempre deve orientar a defesa da fé e dos cânones que a sustentam, decidiu comportar-se como se a Itália fosse “um protectorado do Vaticano”.
Papa, cardeal Ruini (presidente da CEI e um cardeal decididamente reaccionário), L'Osservatore Romano, Rádio Vaticano e demais instituições católicas lançaram-se numa cruzada incompreensível.

Neste projecto de lei, o que mais exaspera os homens do Vaticano, segundo dão a entender, é a inclusão das uniões dos homossexuais.

«Artigo 1: Duas pessoas de maior idade, ainda que do mesmo sexo, unidas por recíprocos vínculos afectivos, que convivem estavelmente e se prestam assistência e solidariedade material e moral (…)
«Art. 6: Para fins da presente lei os sujeitos da alínea 1 são definidos “conviventes”»

Isto é um projecto de lei que pode ser aperfeiçoado e que, segundo sondagens, a maioria dos italianos aprova. Repare-se que não se fala de casamentos de homossexuais; apenas serão considerados "conviventes".

Terça-feira passado, dia seis, o quotidiano “Avvenire” – órgão da Conferência Episcopal Italiana, CEI – publicou um editorial que mais parece um ultimato ao governo que uma defesa de princípios. Eis o título: «Il perché del nostro leale “non possumus”» (o porquê do nosso leal “non possumus”)

Depois de todas as considerações, negativas, em relação ao projecto de lei, no último parágrafo a CEI demonstra, sem ambages, o pouco ou nenhum respeito que deve às decisões de um estado livre. Transcrevo-o.
Por estes motivos, se o texto que ora circula como indiscrição (o texto do projecto de lei) fosse substancialmente confirmado, nós, por lealdade, devemos desde já dizer o nosso “non possumus”. Que não é, de maneira nenhuma, um gesto de arrogância, mas sim a consciência do que devemos – por serviço de amor – ao nosso País. A indicação franca e desarmada de uma clara divisão que, inevitavelmente, pesará no futuro da política italiana”.
Em palavras mais chãzinhas: ou fazeis o que nós determinarmos ou tudo faremos para que o governo salte. Por “lealdade”, eles avisam!...

Felizmente, nem todos os eclesiásticos se reconhecem neste fundamentalismo, mas a maior parte não pode pronunciar-se. E não pode, sobretudo, quando escuta as altas hierarquias e o próprio Bento XVI que não perde ocasião, quase diariamente, de exprimir censuras a quem entende “subverter a família”;Conceder o sufrágio do próprio voto a um texto legislativo, tão nocivo para o bem comum da sociedade, é um acto gravemente imoral”. Estas são duas das múltiplas exteriorizações de Sua Santidade.
Temos de concluir que, para Bento XVI, o governo italiano é um subversivo!

Pelos vistos, o governo do Sr. Berlusconi era mais aceitável!...
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O director do jornal La Repubblica, num belíssimo editorial de 7/02/2007, pergunta: «É ainda consentido, na Itália de 2007, crer em Deus e votar à esquerda?»
Termina o artigo com esta frase: «Hoje, arriscam a fazer-nos encontrar um Deus de direita, e somente dizê-lo já parece uma blasfémia»

Em tantos anos que sigo a politica italiana, nunca assisti a uma tão indigesta e pesada campanha contra o poder legislativo e, repito, a independência de um estado laico.

Defender a fé e ética católicas é um sacrossanto direito e dever; ditar comportamentos é fundamentalismo intolerável para quem raciocina com o bom senso e perfeita consciência dos direitos e deveres do cidadão comum.
Só pergunto: aonde quer chegar a Igreja Católica? Entende, verdadeiramente, fazer cair o governo e pugnar para que seja eleita uma subserviente coligação de direita, como muitos aventam?

Pretende confrontar-se com os fundamentalismos de outras religiões, imitando-os?

Não seria muito mais inteligente considerar e sopesar bem os tempos modernos, limando o que deve ser limado; adaptando, com equilíbrio, o que deve ser adaptado; fazendo suas campanhas que a coloque na vanguarda da luta às piores e inúmeras mazelas, espirituais e físicas, dos nossos tempos?

Perante a praga da pedofilia; do fenómeno de mulheres e crianças escravizadas e condenadas à prostituição; da violência e pornografia que inundam as televisões; do império de máfias e tráfico de droga e de tantas outras feiuras que caracterizam os tempos em que vivemos, raramente se ouve a voz estentórica, premente da Igreja.
São temas oportunos, sim, mas para discursos solenes de ocasião. A voz apenas se torna altissonante e insistente, como neste caso, para impor preceitos que eles dizem “não negociáveis” – antipática expressão muito usada ultimamente.

Não creio que intransigências de princípios – que em certas situações são bem relativos - levem os católicos, tolerantes e compreensivos do mundo que os rodeia, a seguir passiva e servilmente o autoritarismo das hierarquias responsáveis. Mas estes senhores, pastores de almas, parece que vivem alcandorados nas altas montanhas dos dogmas e não arranjam tempo para descer a vale e inteirar-se das agruras dos problemas diários que afligem os rebanhos.
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Ao fim e ao cabo, são homens falíveis como os demais. Não é esta constatação que nos faz desviar da identidade religiosa em que nos educaram. Falo por mim, obviamente.
Alda M. Maia