segunda-feira, agosto 10, 2009

OS FUNDAMENTALISTAS DO VATICANO

Se fossem movidas pela sinceridade e ardor da própria fé, na violência da linguagem como manifestam e lutam pela defesa daqueles “valores não negociáveis” que as actuais hierarquias católicas sabem usar, compreendê-las-ia e dar-lhes-ia razão.
Não creio, todavia, que essa sinceridade emane da alma: é excessivamente política para arrebatar as consciências.

Depois de vários entraves, o Conselho de Administração da AIFA, a entidade italiana que controla e regulariza a comercialização e uso dos medicamentos (corresponde à nossa INFARMED), nos finais do mês de Julho aprovou a entrada da pílula abortiva, Ru486, no Prontuário Terapêutico italiano, devendo ser comercializada e aplicada apenas nos hospitais.

Como a notícia veio a lume, desencadeou-se, acto contínuo, uma fortíssima reacção negativa dos senhores do Vaticano.
Seja L’Osservatore Romano, seja L’Avvenire – o jornal da Conferência Episcopal Italiana – seja o semanário “Família Cristã”, foram pródigos de artigos em primeira página, emitindo juízos severíssimos. Cardeais e monsenhores, numa indignação que nunca é circular, não usaram eufemismos. Eis alguns exemplos.

Nem todo o Governo se opôs … AIFA tem a primeira responsabilidade… É impossível ficar calado sobre outras precisas e identificáveis responsabilidades políticas” – Avvenire.

Invocando a intervenção do governo e ministros competentes, Monsenhor Sgreccia, Presidente da Pontifícia Academia para a vida, usou a arma da excomunhão: “É automática para quem a usa (a pílula Ru486) e quem a ministra. A pílula abortiva não é um fármaco, mas um veneno. Usá-la é um delito e pecado, em sentido moral e jurídico”.

A introdução da Ru486 no Prontuário Terapêutico põe problemas médicos, jurídicos e morais” – teólogo Luigi Lorenzetti, em “Famiglia Cristiana

Não creio possa haver “problemas médicos e jurídicos”. Na Itália, há a lei 194 que permite o aborto, dentro de normas claras e rígidas. Que o aborto seja cirúrgico ou farmacológico, as regras são sempre as mesmas.
Sobre o ponto de vista moral, a compreensão de situações dramáticas e penosas também nos pode levar a não exprimir opiniões em tal sentido.

Os homens do Vaticano esquecem que AIFA é uma entidade independente e opera num país democrático.
Mas o Vaticano não desconhece esse facto. Simplesmente, sempre entendeu que a Itália é mais um território súbdito que autónomo nas suas decisões de país laico, as quais devem contemplar as necessidades de crentes e não crentes, católicos e não católicos.

Há um aspecto da questão que foi impossível não observar. Em tudo o que pude ler sobre este assunto, não deparei com um único parágrafo que apelasse às consciências, demonstrando suavidade e usando argumentos dignos de uma fé, interiormente profunda, nos valores da própria religião.

Exigências políticas, reprovações, anátemas, ameaças de excomunhão: foi o que sobressaiu, na veemência condenatória dos Senhores do Vaticano!

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Quis falar deste caso e insisti no modo de se oporem à “criminosa” pílula Ru486 por uma razão, razão esta que não pouco me enojou.

O escândalo das festas “boccaccescas”, nos palacetes de Berlusconi; das suas taras sexuais; de amiguinhas que elevou a ministras – não esquecendo os seus casos judiciais pouco límpidos - ainda se não extinguiu. Os jornais estrangeiros de maior fama têm sido impiedosos contra este homem.

As revelações mais escabrosas tinham atingido o ápice; todavia, os homens do Vaticano, sempre tão prontos a verberar os atentados à sacralidade da família, continuavam a manter um plácido silêncio.

Quando se aperceberam que as perplexidades sobre essa atitude se iam avolumando, deram início a declarações, por vezes vigorosas, mas sempre indirectas contra “procedimentos incorrectos e de dúbia moralidade” e outros conceitos similares.
Omissas as condenações claras e inequívocas à conduta indecente e inaceitável num alto representante do Estado.

Por onde andava o desabrimento dos anátemas que agora jorraram contra a legalização da pílula abortiva?
Temos uma moralidade cristã com dupla interpretação, segundo o politicamente correcto? Ou deve-se interpretar essas atitudes como uma espécie de machismo do Vaticano, visto que a dignidade das mulheres, algumas de menoridade, não merece indignação?

Muitos sacerdotes e fiéis escreveram centenas de cartas a protestar contra esse silêncio incompreensível.

Porém, aos zeladores da pureza dos preceitos cristãos, não convinha condenar explicitamente o chefe de um governo que tudo faz para se mostrar submisso – na mira dos votos, obviamente - aos ditames doutrinários ou a outros interesses do Vaticano: ditames e interesses que nem sempre coincidem com as reais necessidades cívicas dos cidadãos italianos.

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Almodóvar convida o Papa a sair para a rua e ver como vivem as famílias modernas.
Eu vou mais longe. Nenhum eclesiástico deveria chegar aos altos cumes das hierarquias sem ter exercitado, ou conhecer profundamente, o sacerdócio entre os humildes e necessitados; viver entre quem deve enfrentar a luta diária.

Não se chega a cardeal ou Sumo Pontífice apenas por altos estudos teológicos (que também são necessários), mas, acima de tudo, porque se conhece a humanidade sofredora e a sociedade civil com todos os seus problemas.
E se assim fosse, penso que não se verificariam tantas dissonâncias entre as hierarquias católicas e aquela massa de fiéis e sacerdotes que, em fim de contas, são os que formam o verdadeiro corpo da Igreja.
Alda M. Maia