segunda-feira, abril 23, 2012

A MODERNA FEBRE DO OURO

Quase poderia dizer que não existe uma única rua, aqui na cidade de Vila Nova de Famalicão, onde não se vejam grandes cartazes amarelos a informar que se compra ouro. Houve acenos ao pagamento de cinco euros a quem desejasse avaliar os seus tesouros.
Inicialmente, a onda crescente de negócios de compra e venda de ouro despertou-me apenas curiosidade. Esta curiosidade, todavia, foi de breve duração e transmutou-se em asco.

Os motivos que provocaram tal mudança apresentaram-se-me no seu primeiro significado: a maldita crise e os dramas de quem perdeu o emprego; de quem viu os seus rendimentos decresceram e tornarem-se insuficientes; a miséria de quem tem de socorrer-se do que ainda possui de valioso, mesmo que seja a modesta aliança de casamento.
Agora, sempre que tropeço nesses convites, alguns aludindo à oferta de 33,00 euros por um grama, encontro um único termo de avaliação: abutres.

Chamo-lhes abutres, porque me é difícil encontrar um motivo que explique, com razoabilidade, esta explosão ostentatória da compra de ouro e pratas a privados, aproveitando-se da tremenda situação económica e financeira que atravessamos e nos estrangula.
Sempre existiram e existem ourivesarias que não somente vendem como compram peças de ourivesaria usadas. Que a crise as leve a potenciar e aumentar as transacções, nada se vislumbra de anormal, pois entra na sua peculiar ordem de actividade. Anormal é esta febre e o pulular de negócios ad hoc que a exasperam.

Perto do local onde compro os meus jornais, abriu um escritório exclusivamente dedicado ao “compramos ouro usado” e cuja fachada se apresenta inteiramente atapetada com as inevitáveis parangonas em papel amarelo. Quando estas parangonas, casualmente, atraem a minha atenção, sempre as imagino a piscar o olho aos necessitados ou aflitos, e desvio os olhos anojada. Confesso que é já um sentimento que não sei dominar.

O Público de sábado passado, nas duas primeiras páginas interiores, apresentou um serviço interessante e com amplas informações sobre o nosso Portugal que “está a derreter parte da sua história da joalharia”.
Peças de ouro antigas ou de uma certa beleza criativa, juntas e no mesmo grau de importância de quaisquer outras peças banais, serão derretidas e transformadas em barras de ouro, destinadas a exportação: as exportações de ouro, nos dois primeiros meses de 2012, aumentaram 147% em relação ao mesmo período de 2011.

Mais uma vez pergunto: Portugal está mesmo a saque?
Obras de arte que saem do país e ninguém presta a devida atenção à qualidade dessas obras, ao modo como vão para o exterior e ao provável empobrecimento do nosso património artístico. Surge agora esta febre do ouro e a destruição de tantas peças que a nossa ourivesaria soube criar através dos séculos.

Por que não se estuda o fenómeno aprofundadamente, tentando discernir o que é aceitável do que é ilegal ou moralmente condenável?
Qual a razão de tanta indiferença? Mas será indiferença, conivência nas exportações ou ignorância de quem deveria defender e curar estes bens que nos enriquecem e caracterizam?
Penso que se verifique a combinação destas três causas, além da estupidez, o que é muito triste e desconfortante.