segunda-feira, agosto 12, 2013

COMPREENDER PAPA FRANCISCO

No Angelus de ontem, Papa Francisco desenvolveu o tema “ O verdadeiro tesouro do homem é o amor de Deus”.
Em seguida e referindo-se à conclusão do Ramadão, dirigiu uma saudação aos “muçulmanos do mundo inteiro”, definiu-os “nossos irmãos” e augurou que “cristãos e muçulmanos se esforcem por promover o respeito recíproco, especialmente através da educação das novas gerações”.
Não creio que sejam palavras de ocasião, mas sentimentos e intenções sérias.

Recordei então um artigo de Umberto Eco, na sua rubrica “La Bustina di Minerva” de 25/07/2013: “Existe um filme para compreender Bergoglio”
Procurarei traduzi-lo na íntegra. É uma leitura interessante

Recordais-vos de “Mission” que ganhou a Palma de Ouro em 1986? Narra um acontecimento que teve como protagonistas os jesuítas sul-americanos de há 250 anos. É daqui que provém, culturalmente, Papa Francisco.

Papa Francisco assume (ele, jesuíta) um nome franciscano, vai habitar num hotel; só falta que calce sandálias, vista um saio, expulse do templo os cardeais em Mercedes e, enfim, vá sozinho a Lampedusa aliar-se com os rejeitados do Mediterrâneo como se a lei Bossi-Fini* não fosse uma lei do Estado italiano.
É, na verdade, o único a dizer e fazer “coisas da esquerda”? Mas no início fizeram circular vozes sobre a sua excessiva prudência para com os generais argentinos; recordaram a sua oposição aos teólogos da libertação; sublinharam que ainda não se tinha pronunciado sobre o aborto, as estaminais, sobre homossexuais, como se um papa devesse andar pelas ruas a oferecer preservativos aos pobres.
Quem é Papa Bergoglio?

Creio seja errado considerá-lo um jesuíta argentino: é um jesuíta paraguaio. É impossível que a sua formação não tivesse sido influenciada pela “experiência sacra” dos jesuítas do Paraguai. O pouco que as pessoas sabem sobre eles é devido ao filme “Mission” que condensava, em duas horas de espectáculo e com muitos arbítrios, 150 anos de história.

Façamos um resumo. Os conquistadores espanhóis, entre México e Peru, tinham efectuado massacres inenarráveis, apoiados por teólogos que asseguravam a natureza animalesca dos índios (todos orangotangos), e somente um dominicano corajoso como Las Casas se tinha exposto contra a crueldade dos Cortés e dos Pizarros, apresentando os indígenas sob um aspecto diferente.

No início do século XVII, os missionários jesuítas decidiram reconhecer os direitos dos nativos (em particular os Guarani que viviam num estado pré-histórico) e organizaram-nos em “reduções”, isto é, comunidades autónomas auto-sustentadas: não os reúnem com o fim de os obrigar a  trabalhar para os colonizadores, mas ensinam-nos a administrar-se por si próprios, livres de qualquer servidão, numa total comunhão dos bens que produziam.
A estrutura das aldeias e a modalidade daquele “comunismo” leva-nos a pensar na “Utopia” de More ou na “Cidade do Sol” de Campanella. De “pretenso comunismo campanelliano” falará Croce, mas os jesuítas inspiraram-se nas comunidades cristãs primitivas.

Enquanto constituíam conselhos electivos formados somente por nativos (mas aos padres ficava a administração da justiça), ensinavam àqueles seus subordinados arquitectura, agricultura e pastorícia, a música e as artes (embora não a todos, mas produzindo, por vezes, artistas e escritores de talento).

Certamente que os jesuítas tinham instaurado um regime paternalista severo, já que civilizar os Guarani significava subtraí-los à promiscuidade, à indolência, à embriaguez ritual e, certas vezes, ao canibalismo. No entanto, como para cada cidade ideal, estamos sempre prontos a admirar-lhe a perfeição organizativa, mas decerto não desejaríamos ali viver.

Todavia, a recusa da escravidão e os ataques dos bandeirantes, caçadores de escravos, tinham dado origem à formação de uma milícia popular que lutara valorosamente contra escravistas e colonialistas. Até que, pouco a pouco, vistos como instigadores e inimigos perigosos do Estado, no século XVIII os jesuítas foram, em primeiro lugar, expulsos da Espanha e Portugal; em seguida, suprimidos. E com eles terminava a “experiência sacra”.

Contra este governo teocrático atiraram-se muitos iluministas, falando do regime mais monstruoso e tirânico jamais visto no mundo. Porém, outros falavam de “comunismo voluntário de alta inspiração religiosa” (Muratori); diziam que a Companhia de Jesus tinha começado a curar a chaga da escravidão (Montesquieu); Mably comparava as “reduções” ao governo de Licurgo; mais tarde, Paul Lafargue teria falado do “primeiro estado socialista de todos os tempos”.

Ora, se nos propomos ler as acções de Papa Bergoglio nesta perspectiva, devemos ter em consideração o facto que, desde então, passaram quatro séculos e que a noção de liberdade é comum, até mesmo aos integralistas católicos; que Bergoglio, por certo, não se propõe ir efectuar experiências nem sacras nem laicas a Lampedusa; ouro sobre azul se conseguirá liquidar o IOR.

Mas acerca de tudo o que acontece hoje, não seria mau notar, de vez em quando, a cintilação da História.

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*Lei italiana de 2002 sobre a expulsão imediata de imigrantes clandestinos