domingo, setembro 07, 2014

O OCIDENTE AMEAÇADO

Captou-me, em absoluto, a leitura do editorial de Ezio Mauro, director do quotidiano La Repubblica, de sexta-feira passada e cujo título é: ”Defender o Ocidente”. Achei-o interessantíssimo e decidi transcrevê-lo, embora parcialmente, dada a sua extensão. Os sublinhados são meus.

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“DEFENDER O OCIDENTE”
“A terceira NATO nasce em Gales depois da primeira, filha da Guerra Fria; a segunda, da idade do meio, quando com a queda do Muro pareceu abrir-se um longo século já sem inimigos para as democracias que reconquistaram o Novecentos.
A guerra de Crimeia traz de novo para o coração da Europa, onde nasceram duas guerras mundiais, tropas, mísseis, carros armados, mortos, feridos, aviões abatidos. Recomeçamos a olhar para os nossos céus e os nossos mapas com aquela mesma inquietação pelo futuro dos nossos filhos que os nossos pais tinham conhecido muito bem, mas nós ainda não.
E dos arsenais da política, da cultura, da diplomacia e da estratégia militar reaparecem, juntamente com os velhos medos, os conceitos esquecidos das “zonas de influência”, dos “blocos”, das “exercitações”, dos Muros, das fronteiras europeias entre Ocidente e Oriente, com o Oeste que reencontra o seu Este e o Kremlin fixo, novamente, na parte do “inimigo hereditário”.

Medimos com igual inquietação as incursões de Putin nas fronteiras ucranianas e a sua popularidade crescente em pátria, não obstante as sanções.
Descobrimos o que deveríamos saber, isto é, que a alma imperial e imperialista da Rússia é eterna e insuprimível, portanto, não é uma criatura ideológica do sovietismo, mas precede-o, acompanha-o e sobrevive-lhe. Bem pelo contrário, depois dos anos de interregno, com o punho de ferro interno e a repartição oligárquica do espólio de Estado, o Oriente russo torna a marcar uma identidade forte, uma soberania territorial e política que, enquanto se reapropria da Crimeia, não esconde veleidades sobre Kiev e tentações sobre os países bálticos, como se Moscovo se rebelasse à história e à geografia de início do século, contestando-as e impugnando-as perante a sua obsessão reencontrada: o Ocidente.

No mesmo instante, o califado islâmico, acabado de autoproclamar-se entre a Síria e o Iraque, ainda não tem um verdadeiro Estado, uma capital, um sistema de relações, mas um punhal apontado à garganta de homens escolhidos para simbolizar, no próprio martírio individual, uma espécie de desafio universal que vai muito além do espectáculo de morte do 11 de Setembro.
A morte encenada como uma mensagem extrema à potência americana, perante todo o mundo, qual rito primitivo do fanatismo religioso e marketing moderníssimo do deserto. (…)

Construir com o terror o Califado significa, sobretudo, cancelar todos os riscos de contágio democrático, ainda que parcial, nos países islâmicos, todos os institutos ainda antes de qualquer instituição, em nome daquele “isolacionismo” que Bin Laden predicava e ameaçava, a fim de expulsar da península muçulmana “os soldados da cruz” com os seus “pés impuros” nos lugares sagrados. Consequentemente, o inimigo definitivo torna-se claro: é o Ocidente.

Mas no momento em que duas partes do mundo o designam, contemporaneamente, como inimigo final e adversário eterno, o Ocidente tem uma noção e um conhecimento de si mesmo à altura do desafio?
Tem pelo menos consciência daquele punhal islamita apontado à sua garganta, enquanto Putin está a reerguer um muro político e diplomático que trave a América, delimite a Europa e bloqueie a liberdade de destinos dos povos?

A resposta da política é inconcludente, a da diplomacia não vai além das sanções. Resta a NATO, o vértice do País de Gales, a polémica sobre as despesas, o projecto de exército europeu. (…)

Durante o breve espaço “de paz”, o qual vai da queda do Muro até ao 11 de Setembro, deixámos definhar, com as nossas próprias mãos, o conceito de Ocidente, enquanto outros trabalhavam para construí-lo como um alvo imóvel. Desvalorizámo-lo como um achado da guerra fria e não como um elemento da nossa identidade cultural, institucional e política, quase como se fôssemos definidos somente pelo adversário soviético e apenas pelo tempo da sua duração.
Também os abalos geográficos na Europa Central - seguidos pela queda do bloco soviético - e as propostas de alargamento da União Europeia foram geridas com parâmetros mais económicos, de mercado e de potência que ideais.

Aquele pedaço do Ocidente que se chama Europa pareceu incapaz, por longo tempo, de ter uma ideia de si mesmo que não derivasse da diferença no confronto com o comunismo oriental; quando o sovietismo caiu, mostrou dificuldade em definir-se, conceber-se como terra onde nasceu a democracia das instituições e a democracia dos direitos. Eis a razão da comunidade de destino – e não somente de aliança – com os Estados Unidos, assim como as razões específicas que a Europa traz neste pacto, isto é, o respeito pelos organismos internacionais de garantia e das regras de legalidade internacional. Para uma aliança democrática (mesmo quando é guiada por uma Superpotência) valem sempre. (…)

Hoje, devemos considerar (se não tivesse sido suficiente o 11 de Setembro) que não é somente a América o alvo, mas também este nosso conjunto de valores e este nosso sistema de vida feito de liberdades, de instituições, de controlos, de regras, de parlamentos, de direitos. Contemporaneamente, também pelas nossas incongruências, misérias, erros, abusos e violências, porque somos humanos e porque a tentação do poder é o abuso da força. (...)

Eles têm o terror de tudo isto, não obstante o nosso testemunho infiel da democracia e o mau uso das nossas liberdades: manifesta-o Putin com a sua soberania oligárquica; manifesta-o, radicalmente, o Estado Islâmico.

Mas nós, estamos em condições de defender estes nossos princípios e de crer na sua universalidade, pelo menos potencial? Ou, pelo contrário, estamos disponíveis a admitir que, por realpolitik, direitos e liberdades devem ser proclamados universais nesta parte do mundo, mas podem ser anunciados como relativos noutras partes? Em resumo, estamos dispostos a defender, verdadeiramente, a democracia sob ataque?
O desafio também está no interior do nosso mundo, porque no afastamento da política e das instituições dos cidadãos do Ocidente, existe a percepção de que se tornaram instrumentos inúteis, perante a grande crise económica e as crises locais abertas no planeta. (…)

Hoje quebrou-se a tábua de contrapesos dos conflitos, a ligação social entre o rico e o pobre, a responsabilidade comum de sociedade. (…)
Paralelamente, uma parte sempre mais larga da população tem a sensação, ante a crise, que o mundo esteja fora de controlo. Isto é, que o sistema de governance que, fatigante e orgulhosamente nos concedemos no longo pós-guerra, encravou e não produza governo dos fenómenos em acto.
 Pela primeira vez bloca-se aquela permuta entre o cidadão e o Estado feito de liberdade e direitos em troca de segurança.

Sentimo-nos cidadãos dentro do Estado nacional, mas percebe-se que o Estado nação já não controla nenhum dos fenómenos que contam na nossa época, não produziu instituições e democracia naquele espaço supranacional dos fluxos financeiros e informativos onde, e não por acaso, a nossa cidadania - o nosso exercício subjectivo de direitos – é puramente formal. 
Das instituições supranacionais que estão mais perto de nós (a União Europeia) sentimos nitidamente o défice de representação e, portanto, de democracia.

Temos nos bolsos uma moeda comum sem saber qual é a face do soberano nela impressa, sem uma autoridade capaz de gastá-la politicamente nas grandes crises do mundo, sem um exército que a defenda. Por fim, da Europa sentimos o vínculo, certamente, mas não a sua legitimidade. (…)

A própria América, que deveria ser a Superpotência sobrevivente do Novecentos e, consequentemente, hegemónica, adverte a crise da sua governance, precisamente quando a eleição de Obama tinha manifestado toda a energia democrática daquele país (…)

Porém, no momento em que, quebrando o unitarismo de Bush, Obama, depois de ter oferecido em vão o diálogo com o Islão, coloca a América fora das guerras no terreno, fechando uma época. A democracia americana descobre-se desarmada e com dificuldade de traduzir a sua força política. Vê Moscovo rearmar-se e Pequim a lucrar vantagens competitivas à sombra das crises que investem, directamente, Washington.

É como se estivéssemos a testar os confins da democracia, quase já não conseguisse produzir representação, governo e instituições capazes de responder às exigências da época. Como se fosse uma construção do Novecentos que chegou exausta a este perigoso início do século XXI.

Não seria o fim de uma ideologia, mas de todo o fundamento do Estado moderno, de uma cultura política, de uma identidade.
Por esta razão, o Ocidente deve ser defendido, com todos os meios, de quem o condena à morte.

Também Putin deveria reflectir sobre o desafio islamítico, perguntando-se por quem os sinos dobram. Talvez recuperando, nos arquivos do Kremlin, a carta que o ayatollah Khomeini escreveu ao último secretário-geral do PCUS, em Janeiro de 1989:É claro como cristal que o Islão herdará as Rússias”.
Ezio Mauro -La Repubblica  -  05/09/2014