segunda-feira, maio 11, 2015

“A ALMA RUSSA”

Mikhail Shishkin é considerado um dos mais importantes escritores russos da actualidade. Nasceu em Moscovo em 1961, mas desde 1995 vive em Zurique.  
Não conhecia este escritor. Em Portugal, penso que o seu livro mais traduzido e premiado (“Maidenhair”, em inglês) apenas se encontra, precisamente, na versão em língua inglesa.

Chamou a atenção o imponente desfile militar de 9 de Maio, na Praça Vermelha em Moscovo, comemorando os 70 anos da vitória soviética sobre o nazismo. o Sr. Putin colheu a ocasião para ostentar a potência bélica Russa. Berlusconi, grande amigo pessoal de Putin, ficou indignado pela ausência, em Moscovo, dos lideres ocidentais e escreveu uma carta ao jornal Corriere Della Sera.
Entre várias considerações, escreve: (…) “Na verdade pensamos, depois de decénios de guerra fria, que seja uma perspectiva estratégica lúcida a de constringir a Rússia a isolar-se? Forçá-la a escolher a Ásia e não a Europa?
No actual cenário geopolítico, o Ocidente enfrenta dois desafios: o económico das potências emergentes da Ásia e o político-militar do integralismo islâmico. Para suster estes desafios é fundamental ter a Rússia da nossa parte. Isto seria coerente, dada a história e a cultura da Rússia que é, por vocação, um grande país europeu. (…)
Terá razão?

Mas voltemos a Mikhail Shishkin. As comemorações na Praça Vermelha trouxeram-me à memória um artigo que este escritor publicou aquando do décimo Festival Internacional de Literatura – de 29 a 03 de Maio 2015 - em Chiasso (localidade suíça, junto da fronteira italiana) e este ano dedicado ao tema “Mudança”
Conservei esse artigo, pois não só o achei interessante, como era o primeiro texto que lia deste escritor. Traduzo-o (da versão em italiano).

“A Alma Russa é uma alma morta”
"Na escola ensinavam-nos que foram os russos a inventar rádio, lâmpadas eléctricas, máquinas a vapor e por aí adiante. Descobriu-se mais tarde que tudo eram histórias que foram parar aos livros de escola nos tempos da perseguição dos “cosmopolitas” (os judeus, ndr) sob o regime de Estaline.
Actualmente, não tenho a mínima ideia do que dizem, sobre este assunto, os textos escolares. No país alastra a “primavera russa” ou talvez o enésimo “inverno russo” e deste modo se provê e reescrever os textos escolares. Provavelmente será introduzida uma nova matéria de estudo: “Fundamentos da alma russa”.

A propósito da alma russa, foi inventada pelos alemães.
Quando os russos começaram a reflectir sobre si mesmos, a alma russa era já de há um par de séculos uma categoria da “russologia” ocidental. Mas já antes, em meados do século XVII, no livro «Viagens de Moscovia» de Adam Olearius, onde o orientalista alemão descreve a visita a uma igreja ortodoxa: «No frontão, a imagem do Juízo Universal. Aqui, um frade, indicando-nos um homem com trajos alemães, disse-nos: Também os alemães e os outros povos poderiam salvar-se se somente tivessem a alma russa».

Hoje estamos no século XXI, não no séc. XVII. Porém, em nome da «ideia russa» e do «mundo russo», corre sangue, tortura-se, tomam-se reféns, fuzila-se, arrasam-se casas, abatem-se aéreos.
E assim, no novo império russo insinua-se a ideia sediciosa que não exista nenhuma alma russa. Existe, pelo contrário, um bando de corruptos que tomou como refém o país. Existe uma televisão “contabalelas”. Existe uma Duma fétida que exala leis asfixiantes. Existe o terror do único homem que envelhece no Kremlin. Existe o uso nacional de lamber as botas aos mais fortes. Existe o slogan «Crimeianossa».

Há a crença imarcescível que diabo e demónios tenham assumido o semblante dos Estados Unidos e da Europa. Há as roubalheiras generalizadas dos burocratas. Há tribunais com quem é melhor não ter nenhuma relação. Há a luta à corrupção, ao mote gogoliano «pede o que te é devido». Há a humilhação da dignidade humana em qualquer lugar: nas ruas, instrução, medicina, pensões. Enfim, há a população que suporta tudo.

A grande literatura russa ajudou a sobreviver no Gulag, mas não pôde esconjurar a transformação do país num Gulag. A grande literatura alemã não pôde parar os alemães que, impelidos pela exaltação, seguiram o seu Führer na catástrofe.

Após 15 anos no poder, Putin obteve tudo aquilo a que um ditador pode aspirar. O povo ama-o, os inimigos temem-no. Instaurou um regime que não se sustenta sobre os artigos vacilantes da Constituição, mas sim sobre as leis inabaláveis da fidelidade dos vassalos ao suserano, da base da pirâmide do poder até ao vértice.
Esta ditadura do séc. XXI aprendeu bem da experiência dos antecessores, a fim de evitar os seus erros: fronteiras abertas e a todos os descontentes o convite indeclinável a deixar o país. Durante o governo de Putin, milhões de pessoas deixaram a Rússia e a onda migratória cresce de mês a mês. A ir-se embora é a elite: cientistas, engenheiros, empresários. Estas catastróficas  hemorragias humanas debilitam o país, reforçando a ditadura. E para os que ficaram, a receita infalível é a guerra.
A histeria patriótica na TV é o ás na manga do regime. Graças à TV lixo, o quadro geral que o povo concebeu é este: o Ocidente quer anular-nos, portanto, como os nossos pais e avós, somos forçados a conduzir uma guerra contra o fascismo e estamos prontos a sacrificar-nos pela vitória. E quem pensa o contrário é um traidor da nação.

Não se vê o fim da guerra na Ucrânia, mas já se sabe quem é o vencedor: Putin. Na corrida para o fornecimento de armas nas zonas dos conflitos, a NATO perderá sempre. O Ocidente não está preparado e nunca estará pronto a premir o pulsante. Na chantagem nuclear, a democracia não tem chance. A cada novo passo do agressor, o Ocidente recua cada vez mais. Os eleitores de Berlim, Madrid ou Roma estarão alguma vez prontos a arder no fogo atómico por uma qualquer Mariupol?

Não existe sanção que constranja os russos a vir para a rua contra o regime de Putin. Provavelmente, as nações ocidentais, assustadas pelo perigo da guerra e da crise económica, reelegerão os seus governos e substituirão os adversários de Putin pelos seus aliados.

O apoio patriótico do povo-zombi a Putin está garantido e a oposição neutralizada e paralisada; no estrangeiro, os inimigos temem a guerra. Que mais desejar?
A pirâmide de Putin é sólida, mas tem apenas um pequeno defeito congénito: a sucessão ao trono. Quando chegar o momento, a pirâmide sólida revelar-se-á um castelo de cartas. Tarde ou cedo tocar-nos-á ver os pilares do regime transformar-se em clãs rivais prontos a destroçar o país.

Em 1917, o grande império russo desmoronou-se em poucos meses. Em 1991 o colosso da URSS estilhaçou-se no espaço de três dias. A pirâmide de Putin pulverizar-se-á em algumas horas.

Ante os nossos olhos, a Rússia emigrou do século XXI à Idade Média. Impossível respirar num país cujo ar está saturado de ódio. Através do curso da História, a tanto ódio seguiu-se sempre tanto sangue. O que está reservado para o meu país? Um gigantesco Donbass."
Mikhail Shishkin