segunda-feira, setembro 12, 2016

NA ESTEIRA DE UMA POLÉMICA SEMPRE VIVA,
UMBERTO ECO E INTERNET

Efectivamente, a polémica sobre a “imbecilidade que reina na Internet”, levantada no ano passado por Umberto Eco, prossegue. Gianfranco Marrone, escritor e professore universitário de Semiótica na Universidade de Palermo, no sábado passado publicou um artigo no jornal La Stampa sobre o mesmo argumento. Interessante.
Decidi traduzi-lo, embora o uso abundante da intercalação de frases no discurso não facilite a rápida assimilação dos argumentos do Sr. Professor de Semiótica.  

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“UMBERTO ECO TINHA RAZÃO,
O WEB CRIA ESTÚPIDOS INTELIGENTES”

"Ireneu Funes, herói de memória em excesso, não tinha corpo. Ou, quando muito, utilizava-o o menos possível.
Recordando tudo de tudo até aos ínfimos detalhes da mais banal das situações, cada coisa e cada percepção das coisas, cada palavra escutada, cada sentimento experimentado, Funes preferia viver na obscuridade, pensando o menos possível e existindo o mínimo indispensável.
Demasiadas coisas na mente, a fim de poder armazenar outras diversas. Mas com qual princípio ordenador? Com qual método? Acabava por ser - nota Jorge Luís Borges, o seu visionário inventor – uma pura voz: alta, nasal, burlesca. Efémera."

"Tenhamos presente esta parábola hiperliterária, simplesmente porque Umberto Eco a utilizou para explicar o funcionamento da rede, os mecanismos da Internet, os efeitos cognitivos e estéticos dos social network.
Eco e Borges, os dois autores máximos das totalizações impossíveis – a biblioteca infinita, o labirinto semiótico, o mapa um a um, Menard que reescreve Cervantes… - também assim se encontraram a compartilhar o problema da memória ambivalente: poucas recordações imbecilizam; recordações excessivas, idem.
Indubitavelmente, aquela que é – pelo menos desde os sapientes gregos aos gigantescos reservatórios das hodiernas máquinas pensantes, passando pelos big data dos péssimos da última hora – a principal prerrogativa da inteligência e do conhecimento, da ciência e da filosofia, isto é, a memória, vê-se entalada entre duas idiotices opostas e complementares: a incapacidade cognitiva do desmemoriado recidivo e a jactância inútil de quem recorda para além do necessário

Funes considera os humanos, distraídos incuráveis, seres que lhe são inferiores. Porém, tem um medo instintivo deles, porque, contrariamente a si mesmo, mais ou menos sabem como viver. Posto o caso desta maneira, o assunto polémico dos estúpidos na rede – que Umberto Eco, provocando-nos até ao extremo, quis consignar-nos – adquire uma nova forma. 
Recordar-se-á a polémica que tinha desencadeado, no ano passado e poucos meses antes de falecer, com uma sua declaração pública (“A Internet está cheia de imbecis”), sobretudo, como é óbvio, na própria Internet. Todos a declarar que não é verdade; que o mestre, desta vez, cometeu um erro; que a rede é o melhor dos mundos possíveis… e ultrapasso os insultos.
Num dos seus últimos artigos, Eco replicou manhosamente, apresentando uma cajadada de contas: Facebook multiplicou os bares do desporto, de maneira que, qualquer pessoa e em qualquer momento sente-se no direito de falar a despropósito."

"Mas o debate ainda continua aberto e serve para reflectir, não só sobre o Web e os seus resíduos, como sobre o sentido profundo da estupidez. De nenhuma maneira evidente.
Musil, por exemplo, observava que não há pior estúpido do que aquele que ostenta a própria inteligência.
Barthes recordava que é necessário sentir-se estúpidos para sê-lo de menos.
E já Flaubert repetia que a verdadeira idiotice consiste em querer deduzir. Tem de quê.
Quanto à rede, falou-se de tudo e do seu contrário. Aplaudida, quando nasceu como a panaceia de todos e de todas as dores de barriga ideológicas, terreno onde a liberdade de palavra teria nutrido o peace-and-love pós-californiano, tornou-se no inferno ao ar livre, onde ignotos oligarcas sugam o sangue esbranquiçado do povo-boi. Ainda se fosse somente cretinice! A dialéctica entre apocalípticos e integrados é viva e em boa saúde, e é curioso que estar-lhe dentro parece estar o próprio Eco, o qual há 50 anos a tinha criticado.

E aqui entra em jogo um profeta pouco escutado, qual é José Ortega y Gasset que em “Rebelião das Massas”, 1930, tinha visto justo: todos somos cretinos e sapientes ao mesmo tempo.
Um especialista de física subatómica balbuciará parvoíces sobre políticas internacionais. Um Prémio Nobel em literatura intervirá com uma embaraçante cara zangada sobre escolhas financeiras planetárias. Um engenheiro maturo palpitará, lendo poesias de quatro patacas à namorada.
Isto é, não existe sabichão que não seja embaraçantemente tonto fora do seu terreno de investigação científica; não há pensador heidggerianamente autêntico que saiba fazer funcionar um smartphone da última geração."

"Todavia e a este ponto, hoje todos se encontram ardentemente nas redes sociais. E não é somente um problema de números. Desconjuntam-se documentos poeirentos. Recompõem-se paradigmas adquiridos. Por um lado, Facebook, Twitter e sócios doam a quem quer que seja a responsabilidade de palavra, assumida com ligeireza e insipiência, dando livre curso às opiniões mais duras e mais puras. Por outro lado, os chamados “média 2.0” redimensionam todos e súbito, nivelando cada biodiversidade cultural dentro das grades  pré-constituídas de um format de adolescentes. E tudo fica registado, escrito, arquivado ao acaso, porém, conservados.
Fale quem pode, os outros, para trás do quadro preto: a fim de fazer companhia àquele idiota Funes."  -  Gianfranco Marrone; La Stampa - 09 / 09 / 2016